Há algo mais a descobrir

Era uma vez, nos longínquos anos 90, uma alma que ansiava por se expressar. 

Lembram-se do Álvaro? Aquele miúdo da nossa turma que tinha um jeitão para desenhar? Aquele que trocou os lápis, por uma gravata, e sem dar por isso, deu por si preso num escritório cinzento, envolvido em pilhas de papéis e números sem fim? Ele era muito bom no que fazia, mas sentia sempre que algo estava a faltar. No fundo, ele sabia que havia um artista dentro dele, à espera de ser libertado.

Álvaro sempre adorou desenhar quando era criança. Ele perdia-se por horas, criando mundos fantásticos com os seus lápis de cor. Mas, conforme foi crescendo, foi desencorajado de seguir sua paixão.

"Desenhar não paga as contas", diziam-lhe. Então, ele guardou os seus lápis, escondeu os seus cadernos de desenho, e seguiu uma carreira mais "séria". No entanto, ele nunca esqueceu o amor que sentia ao criar algo do nada. 

Certo dia, pressionado pelos afazeres da vida, enquanto ia a caminho de casa a pensar nas várias coisas que ainda ia ter que fazer depois de um dia de trabalho complicado, decidiu fazer um desvio. Em vez de sair na sua habitual paragem, saiu algumas mais à frente, numa área da cidade que lhe era desconhecida.

Sentou-se num banco do jardim, afrouxou a gravata, e lágrimas silenciosas começaram a escorrer-lhe pela cara; pensamentos intrusivos, rodopiavam pela sua cabeça, num ritmo tão acelerado que ele não os conseguia controlar. Decidiu deixar-se ficar por ali, e tentar relaxar um pouco. O telefone tocava vezes e vezes sem conta, a sua família procurava por si preocupada, porque não era hábito demorar-se assim. Passavam só 30m da sua hora habitual de chegar a casa, mas Álvaro era sempre tão pontual, e tão assíduo, que bastava meia hora para causar preocupação ao resto da família. Silenciou o telemóvel, respirou fundo e começou a observar as coisas à sua volta.

O facto de não conhecer aquela parte da cidade, despertou a sua curiosidade, e decidiu ir explorar um pouco. Alguns metros mais à frente, encontrou um edifício de aspeto caricato, que quase parecia estar espremido entre dois imponentes edifícios de 20 andares, de tão estreito que era. O letreiro já não era legível, mas a sua curiosidade não o deixaria passar sem espreitar.

Lá dentro, havia várias trepadeiras penduradas em bonitas peças de macramé; muitas estantes com caixas castanhas e etiquetas meio apagadas, copos e copos com lápis e canetas lá dentro, imensos livros com capas coloridas, e uma mesa com folhas em branco e alguns lápis muito gastos. Ouviam-se murmúrios de um gira discos antigo nas traseiras da loja; e um cheiro muito, muito familiar, que Álvaro já não sentia desde que era menino. 

Começou a cerrar os olhos tentando ler as etiquetas das caixas, mas eram muito difíceis de ler. 

“Esse magenta tem uma profundidade maravilhosa, se quiser experimentar está à vontade” - ouviu-se, do fundo da loja, o mesmo sítio de onde vinha a música.

Álvaro ficou atrapalhado, não sabia com quem estava a falar, e apercebendo-se que nem tinha dito “boa tarde” ao entrar no estabelecimento.

“Ah, desculpe, acho que deve estar aqui por engano”. - Disse Álvaro.

“Ou se calhar, está exatamente onde precisa estar, neste exato dia e momento!” - dizia a proprietária da loja, uma senhora de aspeto muito elegante, com um estilo muito próprio, cabelo grisalho enrolado num coque bem alto no cimo da cabeça. com uma série de lápis e pincéis lá enfiados, enquanto saía dos fundos da loja e se aproximava de Álvaro.

Limpou as mãos sujas de tinta a um pano velho, e estendeu a mão para cumprimentar Álvaro.

“Chamo-me Anita, e sou dona desta loja de materiais de Belas Artes. Se precisar de ajuda, é só perguntar. Sei de cor o que está dentro de cada uma dessas caixinhas. E ali estão as amostras, e algumas folhas de papel para experimentar.” - disse, enquanto apontava para a mesa em que Álvaro tinha reparado, assim que entrou na loja.

Passou ali facilmente uns 30 ou 40 minutos a experimentar cores, e nem deu pelo tempo a passar. Sentia-se um miúdo na manhã de Natal.

Comprou tintas e pincéis, e regressou a casa. Depois de uma receção muito efusiva pela sua família, e algumas horas e tarefas domésticas depois, mergulhou de cabeça no mundo das cores. 

A primeira pincelada na tela foi libertadora: sentiu-se como se estivesse a respirar pela primeira vez em anos. 

Cada traço, cada mistura de cores, era uma expressão pura de quem ele era. Passou a noite toda a pintar, perdido no seu próprio mundo de cores e formas.

Depois dessa noite, Álvaro nunca mais foi o mesmo. Ele começou a dedicar os seus momentos livres à sua arte. Ele pintava durante as pausas para o almoço, depois do trabalho, durante os fins de semana. A sua mesa, antes coberta de papéis e relatórios, agora estava cheia de esboços e pinturas. Ele finalmente havia libertado o artista dentro dele.
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O "Álvaro" é uma personagem fictícia. Mas a história dele não.  É a minha, e pode ser a tua também.

Porque nunca é tarde para seguires o teu coração, cuidares da tua mente, e fazeres o que realmente amas.

Vamos celebrar cada passo que tu dás em direção ao teu objetivo: seja ele de criativo profissional, hobbyist, ou porque gostavas de colaborar mais nas sessões artísticos dos teus Filhos.

Quer queiras que a arte pague contas, ou não, uma coisa é certa: a arte alimenta a alma.